
Título: Escrever
Autor: Marguerite Duras
Editora: Difel
Colecção: Literatura Estrangeira
ISBN: 972-29-0289-X
Escrever é um livro que nos fala de criação, que nos fala de morte, de amor, que nos fala de solidão.
A Duras descreve a morte de uma mosca, a agonia da mosca, as horas em que passou ao lado da mosca, olhando-a, morbidamente aguardando o seu fim... ou a sua recuperação. E naquela espera pensou em como a morte se assemelha, em como a morte tem o mesmo sentido, num humano, numa mosca... e nessa semelhança pensou que nunca ninguém falaria na mosca, que nunca ninguém saberia que aquela mosca tinha morrido e como tinha agonizado. E pensou escrevê-lo, escrevê-lo para que a morte da mosca não ficasse no silêncio, para que a mosca não tivesse tido uma vida anónima. E escreveu-o. E essa morte chega-nos através do acto solitário do processo criativo de escrever. A morte da mosca que deixou de ser anónima a partir do momento em que foi descrita pela Marguerite.
Marguerite fala-nos da necessidade de isolamento, de solidão que a escrita necessita e de como o controle deixa de existir sobre a obra. A impossibilidade do criador controlar a obra, após esta acabada torna-se independente, deixa de ser do criador e ganha vida própria, deixa de pertencer e é. E ao ser já não pertence pois não é possível controlar as interpretações. Após a escrita a escrita deixa de ser do escritor. O mesmo com a pintura, ou com qualquer obra de arte, com qualquer arte. E a tentativa vã do pintor expor a sua obra de acordo com regras que determinou e que não sabe bem ainda especificar. Sente que tem de mostrar a obra de determinada forma, como se essa amostragem fosse repercutir para sempre na obra. Mas não pode... ainda que ele queira. Ainda que ele tente. Cada um lerá como entende. Talvez por isso a Duras escreva sem classicismos, sem regras, escreva apenas, sem tentar fazer-se entender ou fazer-se sentir. Escrevendo apenas, como se tudo aquilo estivesse no meio da sua garganta, num caroço que vomita. E não pretende fazer-se legível, não pretende nada que não seja o escrever. E enquanto o vómito não pára ela não mostra a ninguém o escrito, enquanto o vómito não termina ela guarda os escritos e esconde-os, das pessoas, dos amantes. Nem fala neles. Recusa-se a falar neles, faz má cara quando lhe perguntam. Não quer. Falar deles é mudá-los, é repensá-los, é deglutir o vómito, deixando o vómito de ser vómito.
A Duras cedo apercebeu-se que era à escrita que se tinha de dedicar. E nesse processo existiu uma mulher que foi tipo um despoletar, a bomba da inspiração. Uma mulher que ainda que bela, ainda que mãe, ainda que esposa, possui em si o poder de matar. O poder de matar pelo amor. Um homem tinha morrido, tinha-se matado por amores por ela. Essa mulher exerceu um fascínio tão grande na Duras que ela escreveu, escreveu sobre ela, escreveu sobre o poder da morte, o poder de nós mortais provocar morte. O poder da vida provocar morte.
O que prende a Marguerite à morte? A angústia. Essa angústia primordial. Que existe, nasceu não se sabe onde, existe e está em nós. A dela leva-a à morte... Quantos de nós não a sublima? Com a procura de sentir, sentir algo mais forte que essa angústia, simular a destruição e a morte, simular que terminou, que tudo terminou. Simular sublimando.
A solidão. Porque pesa, e ser solitária não é estar-se simplesmente só. É também querer-se estar só, porque necessitamos, porque só assim conseguimos sentir. Sentir para escrever ou sentir para viver. A Duras refugiou-se numa aldeia e nessa aldeia escreveu. Numa casa grande. Adquiriu a casa, e ao fazê-lo lembrou-se do filho, a casa seria depois para o filho. Na aldeia sai e vai à taberna. Na taberna conversa. Tenta averiguar se alguma vez algum escritor viveu naquela casa. Porquê? Talvez na procura de laços. Quem escreve tem laços, sente-os.
O amor, Duras escreveu sobre o amor também. Sobre o amor entre duas pessoas que não podem estar juntas. Sobre o amor de uma cativa pelo “raptor”. Do amor que se desenvolve em relações de poder. E em como ela a liberta e em como ela não quer ser liberta. Em como a vida e as políticas da vida contrariam esse amor. Duas pessoas que se amam e não podem estar juntas. E nessa impossibilidade envelhecem, alimentando a angústia, ou morrem, em batalhas ou suicidando-se.
A Duras escreveu sobre a morte de um aviador inglês em terras francesas. De um jovem aviador. Tinha vinte anos. E escreveu-o um pouco para mais uma vez não cair no esquecimento a morte do aviador. Ainda que na aldeia onde está enterrado ela não caía, pois conta-se a história da sua morte. A sua campa é limpa e conservada, e conta-se a história. Mas ela quis contar também, sentiu que tinha de contar. Talvez também em memória ao irmão morto na guerra, o Paulo, talvez como forma de homenagear todas as vidas jovens perdidas na guerra, homenagear a vida, a morte de alguns. A procura com que a vida não fique esquecida, não tenha sido em vão, que haja alguém a valorizá-la, a vangloriá-la, a falar dela. Da vida dos que morreram. Tal como o plano que tinha de construir uma lista com todos os nomes dos operários que tinham trabalhado numa fábrica da renault que entretanto fechou: Quantos foram? Muitos, Era só constituir uma lista, uma lista para que esses nomes deixassem de ser anónimos, aliás para que os operários deixassem o anonimato e vivessem pelo nome, por um nome na lista. Uma necessidade de matar o anonimato. Esta sociedade pede-nos que nos anulemos, que vivamos iguais, que nos percamos no anonimato. E só sobressai dele quem faça grandes feitos.
É evidente que sendo a Duras uma escritora de amor e morte nos fala de relações, e nos fala da riqueza de relações com silêncio, com poder, com forças contrárias. Relações ricas em emoções, sentimentos. De pessoas com personalidade distintas mas que se encontram e se amam. Por acaso ou porque assim tinha de ser, porque os encontros se fazem, porque está escrito, onde? Não interessa, porque assim foi e assim é. Porque numa relação o poder é calado, é omisso. Sentido apenas. Sentido por olhares, por breves palavras. E essa é a magia da Duras, de conseguir transmitir sentimento e emoção entre duas pessoas sem que estas falem, sem que exista um diálogo, sem que no diálogo haja uma palavra que refira o que elas sentem ou pensam. Ela faz-se sentir por outros modos, de outras formas, faz-nos sentir o que deveria ser dito, o que poderia ser dito e não se disse, o que eles calam. Ela faz-nos sentir o silêncio que acompanha as relações, que acompanha duas pessoas, que acompanha, acompanhou e sempre acompanhará a humanidade, desde que ela existe.